sexta-feira, 12 de março de 2010

Edusp lança livro sobre Libras baseado em pesquisas do IP


De olho na inclusão dos quase 6 milhões de brasileiros surdos ou com deficiência auditiva, a Editora da USP (Edusp) lançou recentemente o Novo Deit-Libras: Dicionário Enciclopédico ilustrado trilíngue da Língua de Sinais Brasileira (Libras) baseado em linguística e neurociências cognitivas. O livro foi organizado pelo professor Fernando César Capovilla, do Instituto de Psicologia (IP) da USP , em parceria com as pesquisadoras Walkiria Duarte Raphael e Aline Maurício.
O novo dicionário apresenta o dobro de sinais em relação à versão anterior, lançada em 2001 também pelo grupo encabeçado por Capovilla: são 14 mil verbetes em português que correspondem aos 9.828 sinais de Libras e 56 mil verbetes em inglês, correspondentes aos verbetes em português. A obra também apresenta a classificação gramatical dos verbetes, descrição escrita da forma e do significado dos sinais, exemplos de uso e ilustrações gráficas dos verbetes. Os leitores ainda podem contar com a ajuda de um índice semântico que agrupa os verbetes em temas.
"É um marco histórico de valor inestimável para a educação brasileira, a cultura brasileira, a cidadania brasileira. Agora, uma população de cerca de 6 milhões de surdos e deficientes auditivos deixará definitivamente de ficar à margem da educação e cultura, mas poderá enriquecer a educação e a cultura brasileiras como um todo com seu idioma próprio e sua cultura própria", comemora o professor Fernando César Capovilla.
A publicação é fruto de um trabalho de mais de 20 anos com mais de 200 colaboradores, entre informantes surdos de todo o país, intérpretes ouvintes, mestrandos e doutorandos, ilustradores de sinais e de significado, e revisores.

"Tudo começou em 1989, quando começamos a trabalhar com pessoas com severos distúrbios de comunicação e linguagem expressiva, tanto de origem motora (paralisia cerebral) quanto linguística (afasia). Desenvolvemos dezenas de sistemas computadorizados de comunicação alternativa, falantes e com tela sensível ao toque e/ou acionáveis por movimentação do corpo ou piscar", conta Capovilla. Esses sistemas foram usados na reabilitação clínica de afasias e na comunicação para inclusão escolar de crianças com paralisia cerebral e, posteriormente, para alfabetização dessas crianças. "Pudemos substituir comunicação alternativa por meio da escolha de pictogramas falantes pela comunicação por escrita alfabética assistida por computador e falante com voz digitalizada e, depois, sintetizada."
No início dos anos 1990, o grupo liderado por Capovilla foi procurado pela família de um surdo que se comunicava por língua de sinais, mas que, devido a uma lesão cervical, tinha se tornado tetraplégico. "Pensamos que seria simples: bastava digitalizar os sinais da Libras e as palavras faladas correspondentes e, então, um surdo tetraplégico poderia, pelo piscar, acionar um computador e selecionar sinais animados e falantes em sequência de modo a compor mensagens. Essas mensagens poderiam ser faladas, para comunicação face a face entre surdo e ouvinte (ainda que este fosse cego), ou remota por rede, cifrando sinais da Libras para a American Sign Language (Língua de Sinais Americana), de modo que um surdo brasileiro pudesse se comunicar pelo piscar com um surdo americano."
Nessa expectativa, Capovilla viajou ao Canadá, de onde trouxe o melhor dicionário disponível de American Sign Language. De volta ao Brasil, partiu em busca de um exemplar nacional. "Fiz a via crucis por todas as bibliotecas das principais universidades brasileiras à procura de um dicionário de Libras. Não existia nenhum", conta. Segundo ele, a única exceção eram alguns manuais feitos por religiosos, como o padre norte-americano Eugênio Oates, e um pequeno dicionário pictorial do século XIX elaborado pelo surdo Flausino da Gama.
Um dicionário brasileiro
A ideia de elaborar um pequeno dicionário foi desestimulada por colegas que diziam que 'era coisa de linguista e que os linguistas já estavam trabalhando num dicionário desde início dos anos 1980'. Cansado de esperar, o grupo liderado por Capovilla começou, então, a fazer um pequeno manual, que foi publicado em 1998.
Em 2001, lançaram o Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue (Deit) da Língua de Sinais Brasileira (Libras), primeiro dicionário de Libras feito a partir dos informantes surdos da Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (Feneis), revisado e chancelado pela entidade. Publicado pela Edusp, com apresentação do neurologista Oliver Sacks, ganhou prêmios no Brasil (pela Câmara Brasileira do Livro) e no exterior (Gallaudet University). "Esse primeiro dicionário teve uma importância histórica, e serviu para ajudar a consolidar a Libras como entidade linguística formalmente documentada, o que ajudou a consolidar os direitos civis dos surdos e a viabilizar leis e decretos federais a respeito da Libras e de seu ensino", explica o Professor.
A legislação brasileira determina que a Libras deve ser ministrada como disciplina obrigatória em todos os cursos de licenciatura, bem como nos cursos de fonoaudiologia, pedagogia, educação especial, normal e normal superior, além de em todos os demais cursos como disciplina optativa. E pensando na necessidade de dispor de material para o ensino da Libras, em 2004 e 2005 foi publicada a Enciclopédia da Língua de Sinais Brasileira, em 5 volumes, que permite verter o currículo escolar para a Libras.
Em 2006, impressionados com o enorme crescimento do léxico da Libras desde a publicação do Deit-Libras em 2001, o grupo começou a trabalhar no dicionário que acaba de ser publicado pela Edusp.
O grupo agora prepara a Nova Enciclopédia da Língua de Sinais Brasileira, e Capovilla prepara um Tratado de Educação de Surdos e um Compêndio de Avaliação do Surdo, que devem ser publicados também pela Edusp. Em tempos de mídias digitais, as novidades não param por aí. "A nova Enciclopédia ou o Tratado deverá ser acompanhado de uma Enciclopédia Eletrônica da Libras", conta o Professor.


Um paradigma de linguística

Os primeiros dicionários de língua de sinais representavam os sinais como se fossem gestos, mímica e pantomima. Para os linguistas, como a relação significante-significado era clara demais, os sinais se prendiam ao concreto, impedindo abstração. Portanto, por exemplo, para o linguista suíço Ferdinand de Saussure e o filósofo alemão Immanuel Kant os sinais não constituiriam língua propriamente dita, mas apenas um sistema gestual de comunicação que prenderia seus usuários ao concreto.

O pai da Psicologia Experimental, Wilhelm Wundt, já concebia a comunicação dos surdos como sendo linguística, e os surdos como um povo com cultura e língua próprias. O primeiro linguista a propor que as línguas de sinais são, de fato, língua, foi William Stokoe, da Universidade Gallaudet, em 1960. Em 1965, ele publicou An American Sign Language Dictionary based on Linguistic Principles, dicionário que foi instrumental para o reconhecimento das línguas de sinais como línguas inteiras, propriamente ditas. Contudo, esse dicionário, assim como os demais que se seguiram, ignorava o teor gestual dos antigos dicionários (o qual apelava para o hemisfério direito), e se atinha apenas ao teor quirêmico (de formas de mão).

O novo dicionário publicado pela Edusp propõe uma revolução ao conciliar as duas abordagens: a pictorial, gestual, mímica, pantomímica dos primeiros dicionários dos surdos, e a linguístico-quirêmica dos dicionários dos linguistas. Também descreve a forma dos sinais, tanto em termos de sua anatomia (sua estrutura quirêmica em termos de formas de mão, orientações de palma, movimento) quanto em termos de sua filogenia (sua origem, em termos de como o significado inspira e motiva a forma)

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